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Gente é pra brilhar: o acesso à arte e à cultura por meio da extensão universitária

Updated: 2 days ago

Desde 2021, as atividades extensionistas do Instituto de Cultura e Arte (ICA), da UFC, alcançaram mais de 366 mil pessoas


Por Giovanni Scomparin

e Israel Vancouver*


Fachada do ICA, no campus do Pici, UFC, em Fortaleza / Israel Vancouver

Árvores, bancos e pessoas sempre fazem parte do paisagismo de um grande prédio com vidros na entrada e um pergolado com rosas. Dentro do campus do Pici, um pouco afastado de tudo, ao lado do velho Restaurante Universitário, há um espaço cheio de história e vida, com muitas pinturas na parede que possuem narrativas próprias e um motivo para existir. Ao andar nos corredores, sempre o som de um violino ou violoncelo sendo afinado, alguns sopros em clarinetes e flautas e, com sorte, alguma voz cantarolando uma peça clássica ou um pedaço da história da Música Popular Brasileira. Bom seria se todas as pessoas artísticas tivessem a oportunidade de adentrar o Instituto de Cultura e Arte (ICA) da Universidade Federal do Ceará (UFC). Teoricamente, o acesso ao local é garantido, já que o espaço pertence a um órgão público. Mas o que realmente levaria alguém a explorar um ambiente desconhecido, sem uma atração que desperte seu interesse?


O ICA pode ser um espaço um pouco diferente do que se vem na mente quando alguém pede para imaginar uma universidade, mas lá possui tudo que propõe a educação superior, baseada em três pilares. Os dois primeiros são facilmente presumíveis: o ensino e a pesquisa. Aulas, artigos, leitura e escrita, provas, trabalhos… Exatamente o que se espera de um ambiente educacional. Mas é importante lembrar que o motivo de estar em um local acadêmico é adquirir conhecimento para dar um retorno à sociedade através da sua força de trabalho. É daí que surge a necessidade do terceiro pilar: a extensão, que deve sair dos muros da universidade e permitir que discentes interajam com o público externo, tendo uma prévia do que será a vida profissional pós graduação.


Assim, a extensão tem a possibilidade de expor a universidade a quem não a conhece, e a arte é uma grande aliada do processo de apresentação universitária. Além de ser bonita e atrativa, o contato com a arte pode trazer outros benefícios, como afirma o terapeuta ocupacional Tiago Madeira.


“O contato com as atividades artísticas possibilita ao sujeito um aumento de seu repertório simbólico, no rumo de suas aquisições constitutivas para um viver criativo. Ao envolver-se com materiais diversos, experiências criadoras e improvisacionais, o sujeito experimenta contar sua própria  história por meio de sua trilha significada durante as atividades realizadas na dinâmica envolvente da arte”, declara.


O sonho desconhecido


A cultura e a arte, para muitas pessoas, pode se resumir a uma ideia hegemônica, com o consumo do que é mais exibido na televisão e no rádio. Mesmo assim, parece uma realidade distante, algo quase sobre-humano. Essa “distância da realidade” pode ser uma explicação para a admiração exacerbada de artistas.


Ao mesmo tempo, a arte está presente no dia a dia da população. Seja na música tocando no fone de ouvido a caminho do trabalho, no grafite na parede da casa da frente ou no filme assistido na sexta-feira para desopilar um pouco o cansaço da semana. Se essa presença é tão facilmente perceptível, por que o ensino e o contato direto com a arte parece tão distante?


Dora Queiroz, docente do curso de música da UFC, conta que o cenário da música clássica fortalezense é, praticamente, operário: “o filho do cara rico não se torna músico”. Ela afirma que em suas aulas de ensino coletivo de violoncelo e contrabaixo acústico, a maioria das pessoas participantes vêm de bairros afastados, raramente do centro turístico da cidade. Dora reforça que é preciso desmistificar a ideia de que a música é elitista, uma vez que o movimento da música clássica em Fortaleza tem origem em um projeto chamado Espiral, criado na década de 70 e voltado à classe operária.


“A música orquestral em Fortaleza é quase um movimento operário. Sempre faço essa correção porque acho que Fortaleza tem uma característica muito específica. Não é elitista. Pelo contrário! As pessoas ricas não querem que os filhos sejam músicos, querem que tenham profissões mais tradicionais. O que atrai as pessoas para a música é o puro prazer de ouvir e se apaixonar por um instrumento”, declara.


Assim como pensa Dora, pensam discentes da universidade e participantes de atividades de extensão. Scarleth Maestre, de 23 anos, é uma imigrante venezuelana recém-chegada ao Brasil. Em busca de conseguir seu sustento e ligada à arte desde sempre, percebeu que “com arte, conseguiria sobreviver”. Tornou-se artista de rua itinerante, cantando nos ônibus de Fortaleza e de Caucaia, onde mora atualmente. Tendo uma visão mais “de fora”, Scarleth considera que a capital cearense é um exemplo de espaço cultural.


“Quando cheguei aqui, foi uma surpresa. Eu não pensava no Brasil como um lugar com esse acesso à cultura e à arte, mas quando cheguei no Ceará, percebi que é o contrário. Fortaleza está muito voltada a isso. Sinto que a cidade valoriza muito a arte e a cultura e estão fazendo exatamente o oposto do que pensei. Vejo a galera sempre criando”, conta.


Entretanto, tendo em vista a pluralidade humana existente nos 121 bairros de Fortaleza, a arte pode estar presente, mas sempre no lugar de hobby e com pouco ou nenhum estudo teórico. A ausência de atividades de democratização inibe sonhos que jovens nem sabem que têm. A possibilidade de acesso ao contato teórico com a arte é, também, um fator de cidadania que é poucas vezes lembrado pelo poder público.


Enquanto isso, o imaginário de elitização cultural continua se perpetuando na mente da população, fazendo pessoas acreditarem que a arte é um privilégio e criando frustrações difíceis de reverter. A não democratização gera sonhos desconhecidos.


O sonho adormecido


Sobre a função de apresentação que a extensão possui, é necessário observar o difícil acesso à educação superior pública no Brasil, que faz grande parcela da população adiar o sonho de possuir um diploma universitário.


Segundo dados do Ministério da Educação (MEC), o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) de 2023 teve 3.933.970 inscrições, das quais 3.296.277 (83,8%) podiam concorrer ao Sistema de Seleção Unificada (Sisu) para conseguir ingressar em uma universidade pública. O entrave é que o sistema possuía apenas 264.360 vagas, o que significa que mais de três milhões de pessoas saíram do processo sem garantir uma vaga universitária sem custos.


Fonte: Ministério da Educação (MEC)

Essa é a realidade brasileira: poucas pessoas têm a possibilidade de ter o acesso ao ensino superior, especialmente o público. O Censo de Educação Superior de 2022, divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), mostra que apenas 24,2% da juventude de 18 a 24 anos (em um universo amostral de 22,5 milhões) acessam o ensino superior no Brasil, com 75,8% das pessoas dessa faixa etária não ultrapassando a educação básica, das quais 43,4% conseguiram concluir o ensino médio.


Fonte: Inep

Das pessoas que chegaram ao ensino superior em 2022, 89% se matricularam em universidades privadas, tanto pela grande concorrência para o ensino público quanto pela maior quantidade de instituições não governamentais. Pelos dados mais recentes, são 2.283 particulares e 313 geridas pelo Estado.

Fonte: Inep

O resultado é que muita gente sonha em estar em uma universidade pública e ter ensino gratuito e de qualidade, mas nem todo mundo consegue. A grande concorrência e as dificuldades de estudo para atingir esse objetivo são fatores a se observar nessa situação. No fim, essas pessoas que transformaram a graduação em um sonho adormecido, acabam tendo pouco ou nenhum contato com a universidade. É nesse ponto que os projetos de extensão se tornam ainda mais relevantes. Eles apresentam o que é feito na universidade a um público que ainda não pôde chegar até ela. No melhor dos cenários, ainda instigam pessoas a terem interesse pela educação superior pública.


Esse é o caso de Beatriz Bandeira, aluna do curso de música da UFC e extensionista do projeto Rede Colaborativa de Pesquisa, Formação e Produção Coletiva  de Práticas Vocais da UFC, um projeto de ensino gratuito de música aberto ao público. Beatriz conheceu a produção pedagógica universitária através do projeto Núcleo de Experimentações Operísticas da UFC (NEOU UFC), pensado pela cantora e docente Maria Juliana Linhares e dedicado ao ensino do canto lírico. Algum tempo depois de finalizar os módulos de aprendizagem, entrou no curso de música para se especializar no que mais gosta de fazer. Aos 25 anos, já está perto de se formar e atua em cenários de democratização do ensino de canto, dando aulas no projeto social Casa de Vovó Dedé, que atende pessoas de todas as idades, mas representa uma grande ação de política pública voltada, especialmente, para a juventude.


Beatriz Bandeira (ao centro, de blusa branca) durante curso de canto ministrado por ela na Casa de Vovó Dedé, em Fortaleza / Giovanni Scomparin

Não se sabe se Beatriz nunca teria entrado no curso de música se não tivesse feito parte do projeto NEOU, mas sabe-se que aquilo a tocou de alguma forma. A Universidade chegou até Beatriz e ela acordou seu sonho adormecido. Agora contribui para que mais pessoas trilhem o mesmo caminho de descobertas e paixões.


Cenário atual


Apesar da reconhecida importância da extensão universitária e da exigência de participação dos alunos em alguns cursos, observa-se uma queda nas atividades extensionistas nos últimos anos. De acordo com dados da Pró-Reitoria de Extensão da UFC, o número de projetos de extensão do ICA relacionados à cultura, em agosto de 2024, sofreu uma redução de 50% em comparação com o mesmo período de 2022. Atualmente, o ICA conta com apenas 14 projetos ativos nesse segmento, próximo do número registrado em 2021, quando as atividades da Universidade ainda eram realizadas de forma remota devido à pandemia da Covid-19.

Projetos de extensão no ICA de 2019 a 2024 / Fonte: Pró-Reitoria de Extensão da UFC

Os projetos de extensão no ICA da UFC estão divididos em diversas áreas, com destaque para a música, que lidera em número de iniciativas. Ao todo, os projetos ativos estão distribuídos da seguinte forma:      


Fonte: Pró-Reitoria de Extensão da UFC

Cada um desses projetos tem sua própria história, objetivos, desafios e a dedicação de alunos, professores e técnico-administrativos que trabalham para garantir que a extensão universitária continue viva e não se reduza a meras estatísticas decadentes. A reportagem conversou com representantes dessas iniciativas para entender suas ações e discutir o atual cenário da extensão cultural no Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará, com exceção dos projetos Jovita Feitosa e CENOTEC, dos quais não foi possível obter retorno.


Das coisas que não aprendi nos livros


À frente de dois projetos de música – a Camerata de Cordas da UFC e o Ensino Coletivo de Violino e Viola –, a professora Liu Man Ying atribui o cenário atual à falta de incentivo da universidade para que docentes se envolvam em ações extensionistas. Segundo Liu, no meio acadêmico, a participação em projetos de extensão não tem o mesmo prestígio que a produção científica.


Liu também revela que, ao ingressar como professora no curso de Música da UFC, foi aconselhada por veteranos a não se envolver com extensão para "evitar trabalho". Além disso, enfrentou boicotes de colegas, que votaram contra a permanência de seus projetos, alegando que as atividades ocupavam salas de forma desnecessária.


Apesar das dificuldades, Liu não se arrepende de coordenar seus projetos. Graduada pela Universidade de São Paulo (USP), ela se orgulha do trabalho que realiza na UFC, tornando a instituição uma das poucas no país a oferecer ensino coletivo de cordas dentro da graduação. "Pouquíssimas universidades têm esse tipo de ensino na grade curricular, o que mostra um enorme descompasso entre a produção acadêmica e a realidade das necessidades do mercado e da comunidade", destaca.


O Coletivo, fundado em 2017, permite que qualquer pessoa tenha acesso gratuito a aulas de instrumentos de cordas, ao mesmo tempo em que estudantes de graduação aprimoram suas habilidades pedagógicas. Neste ano, o projeto recebeu 1.800 inscrições, abrangendo alunas e alunos de graduação – de música ou não –, professoras e professores, servidoras e servidores, crianças e membros da comunidade em geral. Os inscritos passam por sete módulos de aulas, nas quais aprendem desde o básico, como afinar o instrumento, até começar a tocar obras mais complexas.

 

Para Liu, a extensão universitária é fundamental. "É uma grande aliada da graduação e da pesquisa. Eu diria que, sem os projetos de extensão, nossos estudantes sairiam defasados, como se estivesse faltando algo", conclui. Esse pensamento fez Liu ser considerada “a cara da extensão” no curso de Música.


A docente também trabalha em conjunto com Dora Queiroz no projeto da Camerata de Cordas da UFC. Dora é outra professora do curso, mais focada no ensino de instrumentos de cordas graves: o violoncelo e o contrabaixo acústico, e seu pensamento é próximo ao de Liu.


“Ninguém se torna professor no momento que passa em um concurso. A construção do professor vai se fazendo ao longo das vivências com os alunos. Então, a minha construção como professora depende inteiramente, completamente, das interações que eu faço dentro destes projetos. Estamos em um curso de licenciatura, formando professores. Isto aqui é para eles um laboratório também, eles estão aprendendo o ofício da profissão aqui na extensão”, conta.


A regência dos ensaios da Camerata de Cordas da UFC é feita por um monitor, enquanto as professoras Liu e Dora tocam seus instrumentos juntas ao grupo / Foto: Israel Vancouver

Outro professor que possui a cara da extensão no ICA é Antônio Wellington de Oliveira Júnior, o Tutunho. “Cuidado com o chão. Aqui tem coisa que parece arte, mas é lixo, e coisa que parece lixo, mas é arte. Mas, afinal, o que é arte?” é a primeira linha do diálogo que se desenvolve ao entrar na sala 109 do Instituto. Gerida pelo professor graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará e pós doutor em Artes pela Universidade de Aveiro, em Portugal. A ideia da sala lotada de bagunça criativa é desempenhar diversos papéis, sem esquecer que é, em primeiro lugar, uma sala de aula.


“É uma sala onde vários projetos estão acontecendo simultaneamente. É uma sala multi propósitos, multi funções, multi perspectivas. Ela é uma sala de aula, mas também é uma sala de reunião, de exposição de artes visuais ou audiovisuais, uma sala de teatro, de dança, de música… É um acervo, um depósito, um almoxarifado”, detalha Tutunho.


Afinal, o que é arte? / Foto: Giovanni Scomparin

A sala também surgiu em 2017 e foi uma derivação do projeto de pós doutorado de Tutunho, que tinha o objetivo de investigar as dimensões e potencialidades de uma aula no mundo contemporâneo, baseado na pergunta “o que é uma aula hoje em dia?” e a partir dos eixos de comunicação, arte, educação e performance.


Inicialmente, a ideia era focada em performances, tendo aulas a partir delas. Mas, após a implementação do projeto, “a sala se impôs”. Segundo Tutunho, o espaço atende, por ano, milhares de pessoas de dentro e de fora da Universidade, seja discentes que fazem disciplinas na Sala, internautas que seguem o projeto em redes sociais ou visitantes de exposições geridas por Tutunho junto a 30 extensionistas que possuem relação com a Sala 109.


“O Governo investe em alunos das universidades federais, e são cursos caros. É um compromisso nosso de levar isso de volta, porque estamos aqui financiados pela sociedade inteira. Aquele rapaz que está de tarde trabalhando numa loja do Centro está pagando seu estudo. Temos que ter isso na cabeça. Como eu levo este conhecimento de ponta que estou desenvolvendo e aprendendo aqui? É na extensão”.


Entrada da Sala 109 / Foto: Israel Vancouver

Apesar da ciência de que a extensão deve expandir, nem sempre isso é concretizado.


O Figurarte é o único projeto do curso de Design-Moda relacionado à cultura. Iniciado em 2013, primeiramente como um acervo criado a partir das doações de duas ex-alunas do curso, a ideia atual é funcionar como uma “figuritonoteca” ou, como nomeia a professora Syomara Duarte, coordenadora do projeto, um “museu de peças”. O espaço onde se expõem as vestimentas tem um clima de brechó e a recepção simpática de Aleson Pinho, técnico de laboratório de Moda e bacharel em Design de Moda pela UFC.


Aleson expõe que o projeto é direcionado a discentes da UFC, sendo mais requisitado por alunas e alunos do curso de Teatro e apreciado pela comunidade externa apenas quando são feitos desfiles e exposições com peças do Figurarte, como o evento feito em comemoração aos 30 anos do curso de Design-Moda. Algumas roupas são feitas como atividades de cadeiras do curso de Moda e enviadas para o acervo, outras são doações de pessoas que querem desapegar de vestimentas que condizem com as características do projeto.


Nessa dinâmica, Aleson conta que o espaço já possui quase mil artigos. Quem precisa de alguma peça para alguma ocasião acadêmica, solicita ao responsável, assina um termo de compromisso e, desde setembro de 2023, paga uma taxa de manutenção, uma sugestão de Aleson para ajudar na existência do projeto que possui gastos com araras, manequins, cabides, umidificadores de ar e amaciantes de roupa, dentre outras necessidades. Antes da cobrança, o técnico administrativo confessa que já tirou muitas vezes dinheiro do próprio bolso para comprar itens indispensáveis ao espaço.


“Existe a questão da desvalorização, do não reconhecimento e da burocratização. A gente tem que trabalhar esta questão de ampliar, de mostrar, de trazer a comunidade externa para conhecer também. É um projeto de extensão que acaba ficando dentro dos muros da universidade. Gostaria de dar uma renovada, ampliar os horizontes, para melhorar essa situação”, desabafa.


O Figurarte conta com peças de mais de 20 anos / Foto: Israel Vancouver

Outro projeto que nasceu com a intenção de democratizar o acesso e o debate sobre arte com a comunidade e, atualmente, enfrenta problemas logísticos que comprometem sua atuação como projeto de extensão é o Cine Refluxus, que atua dentro do Projeto Janelas do Cinema do Curso de Cinema e Audiovisual da UFC.


Criado em 2011, um ano após o lançamento do curso de Cinema, o Cine Refluxus começou como uma atividade estudantil. Devido ao grande número de inscritos e aos resultados positivos das ações, o projeto evoluiu para uma extensão universitária, ao lado de outras iniciativas como o Percurso.


O objetivo do Cine Refluxus é funcionar como um cineclube democrático, com foco em obras pouco conhecidas. Gustavo Marques, estudante do 5º semestre de Cinema e Audiovisual e bolsista do projeto, explica que “é um cineclube voltado para filmes que já foram exibidos há muito tempo e para produções mais recentes com pouca circulação. É um cinema fora do circuito principal, mas ainda assim uma alternativa aos cinemas de ruas, como o Cine São Luiz e o Cinema do Dragão do Mar, por ser totalmente gratuito”.


Além de exibir filmes alternativos, o Cine Refluxus promove rodas de conversa entre as espectadoras e os espectadores para debater as obras. O projeto também funciona como uma plataforma de distribuição, oferecendo aos curtas e longas-metragens produzidos por universitários a oportunidade de serem vistos por um público maior.


Exibição do Cine Refluxus do filme “Rocky Horror Picture Show”, de Jim Sharman, em março de 2024 / Foto: Cine Refluxus

Apesar dos esforços para expandir o alcance do Cine Refluxus, como a tentativa de criar o Refluxus Itinerante para levar as exibições a escolas de bairros periféricos de Fortaleza e divulgar o cineclube para um público externo, o projeto enfrenta dificuldades para "sair da bolha universitária", segundo Gustavo.


Nos últimos anos, o Cine Refluxus nunca teve um local fixo. Embora muitas de suas atividades tenham ocorrido no ICA, o espaço é considerado inadequado pelo bolsista devido à dificuldade de acesso. Como alternativa, os extensionistas tentaram exibir os filmes em Centros Acadêmicos de diversos cursos, mas não obtiveram a adesão esperada. Atualmente, as sessões acontecem na Casa Amarela Eusélio Oliveira, que, apesar da boa localização, ainda enfrenta problemas de falta de público pela instabilidade nas datas e horários das exibições, que dependem da disponibilidade do local.


Gustavo afirma: “Dificulta o processo porque a gente não tem uma casa, o que dificulta a fixação. A questão da localização e do engajamento influencia muito na continuidade dos projetos, e foi assim que o Percurso acabou. Por isso lutamos muito com os estudantes para conseguir esse engajamento para manter o Refluxus”. O graduando conta ainda que a Casa Amarela iniciará uma reforma no próximo outubro, tornando o projeto de extensão nômade mais uma vez.


“O curso de Cinema é sem casa. Antes éramos no CH (Centro de Humanidades), depois passamos pela Casa Amarela, ICA, Casa de José de Alencar e agora estamos no campus do Poço da Draga. Em 14 anos de curso, já estivemos em todos os campi, exceto o Porangabussu. A esperança é que, com a mudança para o Poço da Draga, possamos atrair as pessoas que frequentam o Cine São Luiz e o Dragão do Mar para a faculdade”, conta com esperança.


A importância do artista e da sua arte de estar perto do público é algo defendido também pela doutora Renata Lemes, professora do curso de Teatro na UFC. Foi com base nessa premissa que surgiu o Laboratório de Produção em Artes Cênicas, projeto de extensão que coordena.


Segundo a professora, que também é atriz e diretora, o Laboratório foi criado porque havia uma lacuna na grade curricular do curso de Teatro em relação à produção das artes cênicas, elaboração de projetos, compreender o cenário das políticas públicas de cultura e o vínculo com instituições culturais, além de como atrair o público para perto do artista.


“Ele surge dessa necessidade do estudante estar colocando a mão na massa, de como produzir um espetáculo, viabilizar um trabalho e apresentá-lo ao público. O primeiro objetivo do produtor é conseguir vincular o artista com seu público”, conta.


Para isso, a docente, juntamente com os 20 bolsistas do projeto, desenvolveu parcerias com organizações governamentais, instituições privadas e escolas para promover eventos culturais, como espetáculos teatrais, oficinas, mediações e palestras.


“O Laboratório acabou abrindo muitos braços, parcerias que foram surgindo, eventos que começamos a produzir, com apenas 20 pessoas. Coordenar um laboratório desse tamanho significa conseguir dar conta de ações que se desdobram para além do laboratório, e isso é muito extensão, ir ampliando e começar a adentrar uma lacuna da própria cidade. De fato, Fortaleza tem ainda uma demanda enorme da figura do produtor cultural”, relata.


Renata conta que, trabalhando com o projeto de extensão, começou a ver a universidade como um “meio direto” de democratização da arte. “A universidade dentro da extensão tem o papel de promover o acesso, viabilizando o diálogo entre a produção cultural e a população. Nós do campo das artes estamos dentro desse processo de produzir, mas também de promover a fruição, e, nesse sentido, o Laboratório de Produção em Artes Cênicas conseguiu isso de forma potente”.


Os sons das pessoas


Mesmo com todas as belezas, benefícios e importâncias da extensão, ainda existem problemas que permeiam essa atividade. Após elogios e palavras de orgulho por fazer parte de um projeto, o assunto cai nas dificuldades da extensão na UFC.


Uma queixa recorrente está no número de bolsas oferecidas para extensionistas. Júlia Sampaio, por exemplo, é a única bolsista remunerada do projeto Rede Colaborativa de Pesquisa, Formação e Produção Coletiva  de Práticas Vocais da UFC, projeto de livre acesso ao ensino de música. Além de Júlia, a ação também possui uma professora para aulas de canto lírico, um professor focado na técnica de belting e outro focado no ensino de leitura musical. Todas as pessoas envolvidas dedicam seu tempo e esforço no projeto, mas apenas uma bolsa foi concedida à professora Maria Juliana Linhares. Para além do baixo número de benefícios, a bolsista Júlia considera a baixa quantidade de professoras e professores um entrave para a criação e manutenção de projetos.


“A gente tem um corpo docente muito pequeno em relação a outros cursos. E aí os professores que temos são muito sobrecarregados de disciplinas. Acaba que eles têm pouquíssimo tempo para os projetos. Já até estive em outro projeto que acabou porque não teve um professor para estar à frente, exatamente pela sobrecarga. Acho que falta um incentivo da UFC para contratações, para aumentar o corpo docente, aí sim os professores vão poder relaxar um pouco em relação às disciplinas”, relata.


Júlia é a única bolsista do projeto e dá aulas de canto popular / Foto: Israel Vancouver

Para Davi Saraiva, também graduando em música e extensionista da Rede de Práticas Vocais, o problema está na economia universitária, que gera um mau funcionamento dos espaços e equipamentos.


“Estamos lidando com uma situação precarizada. A gente vai, por exemplo, para uma sala que não tem ar condicionado, que não tem o material que a gente poderia utilizar. Acho que a proposta da sala, inclusive, nem é essa [de ser um espaço para aula de voz], mas, mesmo assim, é o funcionamento de um projeto que visualiza a comunidade externa, então deveria ter aparato suficiente para a gente atender esse público que é importante para a universidade”.


Davi também é professor em uma escola de teatro musical. Na rede de práticas vocais, ensina a técnica de belting / Foto: Israel Vancouver

Enquanto Liu Man Ying considera que o problema está na falta de incentivo para que docentes se envolvam em projetos. Segundo ela, há maior apelo para que professoras e professores se envolvam nas atividades de pesquisa.


“A extensão é só quando o professor quer mesmo, porque ninguém vai dizer para os meus colegas que se não participarem de projetos vão ter salário descontado, porque também não há um estímulo para que você faça a extensão. Eu não ganho um centavo da Universidade para fazer tudo isso. Eu faço porque acredito que isso tem que ser feito, é o melhor para os meus alunos e para o desenvolvimento do campo da música”, relata.


Já para a professora Dora Queiroz, o motivo para a redução no número de projetos relacionados à cultura no ICA é a pandemia da Covid-19. Ela diz que nesse período estava fora do Brasil desenvolvendo seu projeto de doutorado, mas que continuava colaborando com projetos de ensino de manuseio de instrumentos de cordas graves, o que a ajudou a coletar dados sobre as pessoas as quais ela acompanhava de longe.


“Coletei dados com os alunos e um dos principais resultados foi a desmotivação geral durante e pós-pandemia. Na pandemia, a experiência de ninguém foi positiva, só gente rica que lucrou com álcool em gel. Mas eu acho que a gente tem muito trabalho pela frente. Acho que a pandemia foi um atraso na cultura. Se eu fosse fazer uma pesquisa com os professores, provavelmente também teria esse viés”, opina.


Desse pensamento também compactua Tutunho, que fala tanto sobre a pandemia quanto sobre o problema orçamentário da UFC.


“A pandemia foi uma tragédia, um fator de desarticulação muito grande e de desapropriação dos espaços e dos projetos. Ficou muito difícil desenvolver coisas durante a pandemia. Eu acho que isso foi um fator muito grave. Depois a gente teve uma diminuição sensível nas bolsas e financiamentos para fazer projetos”.


Para completar, também comenta sobre o impacto da aposentadoria de docentes.


“Acho também que alguns professores se aposentaram de projetos antigos já consolidados. Tem gente que se aposentou, tem gente que mudou de projeto, saiu de um projeto de viés mais cultural e foi fazer de um de outro tipo… Precisamos ver o que aconteceu”, finaliza.


Outra questão a ser analisada é a burocracia envolvida na criação e manutenção dos projetos. A professora Syomara Duarte e o técnico administrativo em educação Aleson Pinho, ambos ligados ao projeto Figurarte, comentam sobre essas dificuldades.


Syomara, que já tem mais experiência e tornou-se docente na UFC quando o curso de Design de Moda tinha apenas quatro anos — na época chamado Estilismo e Moda —, sente que os entraves administrativos relacionados ao projeto de extensão a desanimaram a ponto de cogitar desistir do Figurarte. “Faz dois anos que estou apenas com bolsistas voluntários porque esqueci de apresentar um dos relatórios. Recentemente, meu pai esteve doente, internado no hospital, e, como eu estava ausente, recebi muitos e-mails que não respondi a tempo. Acabou se perdendo e, mesmo tendo entregado todos os relatórios, não fui contemplada com a bolsa remunerada”.


A doutora em Moda chegou a questionar os critérios para liberação das bolsas e descobriu que o esquecimento de uma das etapas fez o projeto perder força. “Todos os processos burocráticos muitas vezes desestimulam a gente, fora o processo de distribuição [de bolsas]. Agora vou batalhar para chamar voluntários para trabalhar comigo. A sorte é que eles gostam e acreditam no Figurarte”, relata.


Apesar de conseguir mais bolsas remuneradas através da Pró-Reitoria de Assistência Estudantil (PRAE) no programa da Bolsa de Iniciação Acadêmica (BIA) do que a professora Syomara, Aleson ainda considera que a situação está “defasada”. “É um processo que acaba sendo bem burocrático para poucas bolsas e investimentos, o que acaba gerando uma defasagem para o pessoal que faz todo o trabalho: montar projeto, apresentar planilha, relatório, frequência de bolsistas… Enfim, é uma questão de desvalorização, de não reconhecimento”.


Outro ponto que Aleson levanta é sobre a limitação no processo de criação de um novo projeto de extensão. Por ser um técnico-administrativo, ele apenas pode participar como uma vice-coordenação, impedindo de propor novos projetos e liderá-los. “Isso acaba limitando o pessoal de ampliar. Tem muita gente no administrativo com uma base cultural na sua vida pessoal e profissional antes da UFC, mas que acaba se limitando com essas questões burocráticas, sendo que são poucos os que trabalham com isso e têm vontade no nível superior”, afirma.


As demandas foram levadas à Pró-Reitoria de Extensão (PREX) da UFC, que considera que cada caso deve ter uma discussão detalhada. “Isso tem sido discutido, já têm sido propostas algumas revisões das pontuações para as progressões de docentes e técnico-administrativos. No que diz respeito também à questão das burocracias, nós efetivamente temos algumas exigências no campo da extensão. Então, a atividade extensionista acaba trazendo essa burocracia adicional”, conta o pró-reitor adjunto de extensão, professor Carlos Estêvão Fernandes.


Estêvão esclareceu que todas as demandas são ouvidas e acolhidas para tentar encontrar a melhor solução para todos os lados. “A PREX entende que a extensão como processo dialógico da universidade com a sociedade, uma via de mão dupla, sendo importante, obviamente, para a sociedade, mas também para a formação acadêmica dos estudantes. Por isso, estamos atualmente em um diálogo com a Secretaria de Tecnologia da Informação, para uma grande reformulação dos nossos formulários de cadastro de programas e projetos, para simplificar essa burocracia toda, inclusive nos fluxos e trâmites administrativos”, esclarece.


Acerca da criação de novos projetos e dos desafios para a manutenção deles, Estêvão cita a questão financeira como o maior fator dificultante. Ele afirma que não é um caso isolado na UFC, mas que escuta em diálogos com professoras e professores universitários de todo o Brasil as mesmas queixas.


“Tanto o grande incentivo para o trabalho de extensão quanto às dificuldades, de certa forma, esbarram nessa mesma questão do financiamento. Eu participei recentemente de três fóruns, dois deles de nível nacional e um regional, aqui no Nordeste, com os projetores de extensão das universidades públicas, e eu percebo que tem sido sempre uma questão levantada por todas as universidades sobre o financiamento da extensão”, conta.


Essas demandas de quem vive o lado profissional são importantes, pois, apesar das dificuldades, os projetos contribuem para a democratização do debate e do acesso à arte, além de aproximar a produção universitária do público em geral. Segundo dados da Pró-Reitoria de Extensão da UFC, desde 2021, as atividades extensionistas do ICA alcançaram mais de 366 mil pessoas. Um exemplo disso é Trinna, que se inscreveu para participar das aulas do projeto Rede de Práticas Vocais.


“Eu sempre cantei, mas sempre por prazer, despretensiosamente, nunca tinha parado para estudar. Fui atrás disso para tentar entender melhor e está maravilhoso. Os meninos ensinam desde a anatomia do nosso sistema respiratório, e aí você consegue entender melhor exatamente o que você está fazendo. É um conhecimento muito bom”, conta.

Outra aluna que fala sobre os benefícios das aulas da Rede de Práticas Vocais é Emmanuele Rodrigues, graduada em Design-Moda pela UFC que retornou à Universidade para aprimorar suas técnicas vocais.


“Já fui bolsista de extensão quando estudava Moda. Desenvolvíamos um trabalho lá na Barra do Ceará e víamos o impacto que causava na vida das pessoas. Agora estou no lugar de impactada e está sendo incrível, porque dá para perceber nos professores o desejo de entregar algo de volta para a sociedade e retribuir o que recebem aqui”.


Mudaram as estações


Bons ventos sopram sobre o cenário da extensão cultural na UFC. Além do fim da pandemia em 2022, foi criada a Pró-Reitoria de Cultura em 23 de agosto de 2023 e, com essa existência, foi possível a distribuição de mais 50 bolsas remuneradas, pelo Programa de Promoção da Cultura Artística (PPCA). O número representa um aumento de 50% na quantidade de bolsas oferecidas no edital anterior do mesmo programa. A professora Glícia Pontes, vice-titular da Pró-Reitoria de Cultura, afirma que o grande compromisso do equipamento é fazer da Cultura uma dimensão transversal a todas as áreas da universidade, entendendo que ela é um espaço de valorização das diversidades, da História e das Tradições, além de celebrar rituais e dar uma sensação de pertencimento às pessoas.


“A Pró-Reitoria de Cultura tem um papel importante na promoção da arte e entende que a cultura é uma dimensão fundamental no ambiente universitário, porque permite a livre expressão dos nossos sentimentos, desejos e críticas. A arte também é um lugar de pensamento, de criação e de reflexão, então tem tudo a ver com a universidade”, declara Glícia.


A pró-reitora adjunta especifica que muitos dos projetos do PPCA possuem viés extensionista e que, para a Pró-Reitoria, é fundamental a compreensão de que a extensão é um caminho potente e importante de abertura de portas da Universidade para a sociedade.


“Temos sempre pensado em ações, eventos e projetos que tenham a possibilidade de ter uma participação social ativa, gratuita e de qualidade. Promovemos atividades que deem a dimensão que queremos dar, que é a da universidade de portas abertas para toda a sociedade”, declara.


Esse pensamento é compartilhado por docentes, representantes do técnico-administrativo em educação e discentes da UFC. Quem conhece a instituição atesta sua excelência e defende que seu acesso deve ser cada vez mais ampliado para todas e todos os que desejam participar. Embora o acesso à universidade pública ainda represente um desafio, é evidente que a UFC está comprometida em tornar seu impacto mais inclusivo e acessível.


A extensão universitária surge como um valioso complemento às bases acadêmicas, reforçando a missão da universidade de servir à sociedade. Ao oferecer oportunidades de envolvimento cultural e educacional, a UFC e todas as pessoas que a compõem demonstram empenho em expandir o alcance do conhecimento e da cultura para seres que, por algum motivo, nunca tiveram a oportunidade. A educação é libertária e a extensão é a ponte que liga o mundo acadêmico às necessidades e aspirações da comunidade afora. É a realização do ideal de que a universidade deve ser um espaço vibrante e acessível a todos. É o reforço do pensamento de Caetano Veloso de que “gente é pra brilhar”.




*Giovanni Scomparin e Israel Vancouver são estudantes do curso de Jornalismo da UFC / Edição: Robson Braga

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