Da doação à vida: o êxito dos transplantes pediátricos no Ceará
- Kamila Fernandes
- há 12 minutos
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Mesmo diante de desafios como a baixa taxa de doação, o Ceará mantém bons resultados e se consolida como referência nas regiões Norte e Nordeste na área
Por Antônio Eudes Oliveira, Bernardo Maciel, Débora Dias e Karízia Marques

Quem vê a foto acima, não imagina pelo que o pequeno Isaac Lorenzo Silva Costa, de 4 anos, passou durante os meses em que aguardava por um transplante de coração. O pai, Francisco Claudiano, encarregado de desmonte de rocha e residente do bairro Vila Velha, em Fortaleza, esteve presente em todos os momentos com ele até o dia 28 de maio (quarta-feira) de 2025.
“Descobrimos a doença dele em dezembro de 2024, no Hospital Luís França (rede privada), onde ele ficou um mês internado. Lá, já me informaram que ele precisaria de um transplante de coração, mas nós não queríamos acreditar! No dia 8 de janeiro viemos para uma consulta aqui (Hospital de Messejana Dr. Carlos Alberto Studart Gomes/SUS), ele fez um eco (ecocardiograma) e o exame confirmou que ele precisaria de um transplante”, relembra o pai.
Aproximadamente dois dias após a realização da consulta e do exame, Isaac teve uma crise e retornou à unidade hospitalar. Desde então, seguiu internado ao lado de seus heróis Capitão América, Homem de Ferro, Hulk e seu pai — que largou o emprego para se dedicar exclusivamente ao cuidado do filho junto à sogra e outros familiares — à espera de uma nova vida.

“Passamos cinco meses esperando um coração, com esse sofrimento e medo. Medo de perder ele. Houveram quatro tentativas. Das quatro, um estava doentinho e não podia doar e os outros a família não permitiu a doação. Na quarta-feira, ele estava muito mal. A respiração estava muito forte. Aí os médicos me disseram que ele podia ter uma parada”, descreve o pai emocionado.
O caso do Isaac já estava bem avançado, o transplante era a única saída para resolver a miocardiopatia dilatada, doença caracterizada pela distensão das fibras musculares do órgão, que compromete o bombeamento adequado do sangue pelo corpo. Segundo a cardiologista e chefe do Departamento de Cardiologia Pediátrica do Hospital de Messejana (HM) Dr. Carlos Alberto Studart Gomes, Klébia Castelo Branco, a situação de Isaac não tinha outra resposta, senão realizar o processo cirúrgico.
“Por exemplo, o Isaac Lorenzo, ele estava morrendo. A gente não sabia mais o que fazer e o problema era o mesmo. Se o tempo vai passando, eles vão piorando. A gente tem muito problema de doação, tanto devido à quantidade e, às vezes, porque a família também não doa. O maior desafio nosso é a doação. Às vezes, nós passamos maus bocados, porque a gente fica vendo o paciente piorar e não tem doador. Às vezes, passamos meses sem doação de órgãos”, relata.
Com somente um mês de vida, Isaac perdeu a mãe para a mesma doença. Hoje, quem cuida dele é o pai e a avó materna. Ele é acompanhado na ala adulta do HM, por ser maior de idade. Em meio a dor da perda de um familiar, uma determinada família deu esperança e a oportunidade para que Isaac pudesse seguir escrevendo os capítulos da própria história ao lado da família.
“O medo tava grande, mas Deus é maravilhoso que na quarta-feira mesmo, dia 28, veio a notícia que apareceu uma pessoa compatível e faltava só fazer o teste para confirmar e graças a Deus deu certo. Tem que agradecer primeiramente a Deus e segundo a família que disse o sim. Porque foi essa família que permitiu ele receber esse coração, porque o coração dele já estava bem fraquinho”, detalha o pai, sob lágrimas de alegria.
Após a confirmação de compatibilidade, a cirurgia foi marcada e Isaac foi operado no dia 29 de maio, sua data de renascimento. Prestes a receber alta do hospital, o garoto distribui sorrisos de orelha a orelha para quem fala com ele. A alegria do pequeno Isaac é observada de perto pelo olhar de felicidade.

Até o dia 27 de junho de 2025, 37 crianças e adolescentes passaram por algum tipo de cirurgia de transplante no Ceará, segundo a Secretaria da Saúde do Ceará (SESA). Isaac é um dos rostos mais novos desse número, mas não é o único que teve a vida transformada pelo Hospital de Messejana (HM).
Assim como Isaac, Maria Stefany Sá também ganhou uma nova chance de viver. Natural do interior de Monsenhor Hipólito, no Piauí, ela tinha 14 anos quando, há 8 anos, passou por um transplante de coração.
Um novo coração e um recomeço
Stefany, atualmente com 22 anos, tem uma vida ativa, é estudante de Farmácia, dona de uma clínica de estética, pratica atividades físicas e, graças ao transplante, pode escrever cada capítulo de sua vida com a liberdade de viver tudo que um dia pareceu impossível.

Antes de apresentar os primeiros sintomas da doença, Stefany tinha a rotina habitual de uma criança: ia à escola, brincava e se divertia. Sua história mudou quando ela começou a ter episódios sucessivos de dispneia (falta de ar). “Eu não tive uma infância muito legal, porque eu não podia fazer nenhum esforço. E, normalmente, a criança gosta de brincar, correr [...] e eu não conseguia”, confessa.
Com a primeira crise, aos 12 anos, quando Stefany sentiu falta de ar e desmaiou em seguida, sua rotina mudou completamente. Agora, frequentaria regularmente clínicas e hospitais. Após diversas consultas e um diagnóstico errado, sua mãe, Fernanda Sousa, viu o chão sob seus pés desabar quando descobriu o problema da filha e que só havia uma saída: um transplante de coração.
“Eu perdi o chão no momento em que eu soube que a Stefany precisaria realmente de um transplante, foi uma luta de mais de ano para a gente descobrir o que realmente ela tinha. E quando eu soube, para mim foi um choque muito grande, porque eu nunca nem tinha ouvido falar de transplante”, conta a mãe.
“Criança não tem problema de coração”, ouviu mais de uma vez a família, no entanto, após sucessivas consultas, Stefany foi diagnosticada com cardiomiopatia hipertrófica, doença caracterizada por um espessamento anormal do músculo cardíaco. Sem nada nas malas, além de esperança, mãe e filha viajaram do Piauí para o Ceará, e Stefany começou o acompanhamento no Hospital de Messejana (HM), em Fortaleza. Depois da confirmação, por meio de exames e pela equipe do hospital, da gravidade do problema, em novembro de 2016, Stefany entrou na fila de espera.

“Eu quero fazer o mais rápido possível, porque eu quero ser que nem as outras crianças”. O seu desejo era ter uma infância normal. A esperança, em forma de coração, chegou 23 dias após Stefany entrar na lista de espera — “tive muita sorte” — destaca. Mãe e filha passaram a residir em Fortaleza, não só para a realização da cirurgia, mas também para o acompanhamento semanal pós-transplante. As duas permaneceram na capital por quase um ano até a filha receber alta para voltar para Monsenhor Hipólito(PI).
A necessidade de residir próximo ao hospital onde o paciente está sendo acompanhado é recomendada para quem vai receber o transplante, principalmente quando o paciente é de outra cidade. “Um paciente que é de fora, não é que ele não possa voltar para morar no lugar onde ele vivia, mas ele vai precisar de um tempo até ele fazer o transplante, até que esteja estável”, explica Klébia Castelo Branco.
Esse cuidado em residir em um local de fácil acesso ao hospital é essencial, pois, ao surgir um doador compatível, o transplante precisa ser realizado o mais rápido possível, e facilita também o acompanhamento pós-transplante. Klébia relata que algumas famílias encontram dificuldades nessa locomoção. “Já teve mãe que disse pra gente, ‘olha, doutora, não tem como. O único emprego que a gente tem, é nessa cidade. A gente não tem como largar tudo e vir’. E não tem outro jeito. Não tem como transplantar morando em outro Estado, a criança acaba vindo a óbito”.
Uma rede de apoio é peça fundamental para a realização do transplante. No caso de Isaac Lorenzo, o pai deixou o emprego para cuidar do filho. Para acompanhar Maria Stefany, a mãe também precisou largar o trabalho para se mudar com a filha. É nesse contexto que entra a atuação do Serviço Social. Após a entrevista social, o assistente social compreende melhor as especificações de cada caso e pode viabilizar o encaminhamento para o Tratamento Fora de Domicílio (TFD), programa do Sistema Único de Saúde (SUS) que visa garantir o tratamento para pacientes que não podem recebê-los em seus municípios de origem.
Marília Janne, assistente social no Hospital Regional Vale do Jaguaribe, no Ceará, explica como funcionam as articulações para o benefício ser concedido. “A gente tenta mediar com o município ou com o estado de origem. Às vezes, tem troca de acompanhante, tem que mediar com o município de origem, porque TFD possibilita a ajuda de custo, tanto para o paciente quanto para o acompanhante”.
A assistência às famílias não termina com o transplante, há também o outro lado dessa história. Enquanto alguns aguardam ansiosamente uma chance de salvar a vida de seus filhos, outros enfrentam o luto e o vazio deixado pela perda de um familiar. É nesse momento que entra a atuação da Comissão Intra-Hospitalar, formada por uma equipe multidisciplinar, no âmbito dos hospitais, que busca otimizar o processo de doação de órgãos, acolhendo as famílias e apresentando a possibilidade de doação.
Em meio a dor, uma esperança
A emoção invadiu meus olhos, deixando minha visão turva com as lágrimas que em seguida caíram sobre meu rosto. Ficava olhando aquela situação de tamanha dor para os pais e como conseguiam ser solidários e pensar que poderiam proporcionar alegria e esperança para outras pessoas em um momento que para eles era de choro e desesperança.
O trecho é um recorte do livro “Doação de órgãos e o poder da solidariedade: relatos de vida e esperança (2024)”, da enfermeira e coordenadora do Banco de Olhos do Ceará (BOC) e membro da Comissão Intra-Hospitalar para Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes (CIHDOTT) do Hospital Instituto Doutor José Frota (IJF) e do Hospital Geral de Fortaleza (HGF), Lisiane Paiva. Desde 2001, ela trabalha diretamente com doação de órgãos e, no livro, destaca os casos que marcaram sua carreira.
A citação descreve parte da história do pequeno Romulo de Sousa, uma criança de 2 anos e 8 meses que teve os órgãos doados após seu falecimento. “Ele era uma criança que amava a vida”, relembra a mãe, Michelle Arruda. Com doçura e delicadeza, muitos diziam que ele era uma “criança diferente, um anjo do Senhor”.

No dia 9 de junho de 2014, durante os preparativos para o início da Copa do Mundo, a família decorava a casa com as cores da bandeira do Brasil, enquanto Romulo, como de costume, passava a manhã cantando adorações no microfone acoplado ao DVD. Foi então que o acidente aconteceu. Um grito ecoou. A mãe correu e o encontrou caído no chão. Um choque na extensão elétrica e Romulo, ainda com vida, desmaiou.
“A nossa história não vai ficar aqui nesse hospital, ela vai para outros lugares”, dizia a mãe durante a internação do filho. Mas, após cinco dias lutando, Romulo não resistiu. “Na sexta-feira, logo pela manhã, o médico me deu a notícia de que após três paradas cardíacas meu filho não resistira. E ali eu não tive mais força para nada”. Apesar de ser um menino saudável, alegre e cheio de energia, sua história teve um fim repentino. Mas a decisão da família de Romulo, mesmo em meio à dor da perda, representou o recomeço para outras três vidas que, do outro lado, aguardavam na fila do transplante por uma nova chance.
“O meu irmão veio, tomou as providências e a gente foi ao encontro da doação. A doação não veio ao nosso encontro. E ali o meu irmão falou com a Lisiane e disse que todos os órgãos poderiam ser doados. Mas, devido ao choque, que foi muito forte, comprometeu alguns órgãos dele e só puderam ser doadas as córneas e os rins”, relembra Michelle.

A família de Michelle é uma exceção à regra. A doação de órgãos pediátricos é um grande desafio, e uma das principais razões para a estagnação da fila de espera é a recusa familiar em autorizar o procedimento. Nesse sentido, Lisiane Paiva destaca que a decisão de doar deve ser tomada, idealmente, antes do momento do falecimento.
“Decidir pela doação no momento da morte é o pior momento que eles estão vivendo. Então, é muito delicado quando envolve criança”, comenta. Lisiane reforça que para haver a doação é preciso o aceite dos pais e, em meio ao momento delicado da perda, é muito difícil a tomada de decisões. “A gente sempre diz que o transplante é o único tratamento médico que precisa da sociedade para acontecer. É a sociedade que vai doar”, completa.
A cardiologista Klébia Castelo Branco, reforça os desafios para a realização de transplantes pediátricos. “O maior inimigo do transplante é a doação de órgãos. Porque quanto menor for a criança, mais difícil é para conseguir um órgão”. Segundo a profissional, o número de transplantes pediátricos ainda é baixo, principalmente porque há menos doadores infantis, afinal, crianças sofrem menos traumas ou acidentes graves como os adultos.
“Se a gente pensar quem é o doador, é aquele paciente com morte encefálica. Quem é que tem morte encefálica? Paciente que sofre um trauma, um acidente, geralmente, ou algum tipo de violência e tem morte cerebral e o resto do corpo fica OK. Criança não tem isso”, explica.
Esses desafios também marcaram as histórias de Isaac e Stefany, que precisaram adiar o transplante devido à recusa na doação de órgãos. Stefany chegou a ser levada à sala de cirurgia após a notícia de um possível coração compatível, mas a doação não foi autorizada. Com o pequeno Isaac não foi diferente, três corações compatíveis foram recusados antes do transplante. Em contraste, mães como Michelle encontram na doação uma forma de multiplicar a alegria e a vitalidade de um filho para outras famílias.
O Ceará no cenário nacional
O Brasil possui um dos maiores programas públicos de transplantes do mundo, com mais de 90% dos procedimentos sendo financiados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O Ceará tem se destacado nos últimos anos obtendo resultados expressivos apesar dos desafios enfrentados. Em 2024, o Estado realizou 2099 transplantes, é o que mostra o Registro Brasileiro de Transplantes (RBT) realizado pela Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO).
Um dos destaques é o transplante de córnea, onde o Ceará aparece em segundo lugar no ranking nacional, com 1330 transplantes realizados. A coordenadora da Central Estadual de Transplantes do Ceará (Cetra), Eliana Régia Barbosa, destaca que o Estado é referência na realização de transplantes, tanto adulto quanto pediátrico, de órgãos como rins, fígado e coração.
Em transplante de rim, com doador falecido, o Ceará destacou-se na região Nordeste. No comparativo com 2023, houve crescimento no número absoluto desses procedimentos. Transplantes renais aumentaram de 206 para 250, os hepáticos, de 218 para 251, e os cardíacos, de 26 para 35.

No registro, o Ceará aparece em terceiro, considerando o número de transplantes pediátricos de coração, por estado, durante o ano de 2024. Com 6 procedimentos realizados, o estado fica atrás apenas de São Paulo, que contabilizou 15 transplantes, e do Paraná, com 8. O dado reforça a posição do Ceará como referência na área, especialmente nas regiões Norte e Nordeste. Em transplantes por milhão de população pediátrica, o Ceará aparece com uma taxa de 2,0, ocupando também a terceira posição — novamente atrás de São Paulo e Paraná.
Em 2024, o Brasil registrou a inclusão de 725 crianças na lista de espera por transplantes de órgãos sólidos. No entanto, foram realizados somente 555 transplantes pediátricos no ano, número inferior ao de 2023, quando foram contabilizados 574 procedimentos. Outro dado preocupante é a redução significativa no número de doadores pediátricos, que caiu 26% em relação ao ano anterior — de 274 doadores em 2023 para 223 em 2024.

Segundo a ABTO, o número de pacientes ativos em lista de espera no Ceará, em março de 2025, era de 1609. Desse número, 24 eram pacientes pediátricos: 16 na espera de transplante de rins, e 8 na espera por um transplante de coração. Números mais recentes do Ministério da Saúde apontam que, em julho de 2025, o Ceará possui 1939 pessoas aguardando por transplante de órgão. Do número, 18 pacientes têm idade entre 0 e 17 anos.
Entenda o funcionamento da lista de espera para transplantes
A Lista de espera é monitorada pelo Sistema Nacional de Transplantes (SNT) através do Cadastro Técnico Único (CTU), ferramenta utilizada para o registro de potenciais receptores de órgãos e tecidos. Vinculado ao Ministério da Saúde, o SNT organiza toda a atividade de doação, captação, distribuição e transplante de órgãos, tecidos e partes do corpo humano no Brasil. O SNT não permite intervenções e privilégios na lista de espera, o sistema objetiva realizar um tratamento equânime na distribuição.
O paciente é avaliado por equipe médica especializada e realiza exames específicos e então, caso seja confirmada a indicação de transplante, é inscrito na lista única nacional. Alguns exames são comuns para inscrição de receptor de qualquer órgão, dentre eles dosagem de sódio, dosagem de potássio, glicemia, dosagem de creatinina, tipagem sanguínea ABO e hemograma completo.
Conforme a Portaria de Consolidação n.º 4/2017 do Ministério da Saúde, na sessão II, que trata do CTU, após ser inscrito o paciente deve receber comprovante de sua inscrição na lista, assim como orientação sobre riscos e benefícios resultantes do tratamento; esclarecimentos sobre os critérios de distribuição do órgão ou tecido; orientações sobre responsabilidades para a manutenção de seu cadastro atualizado e sobre acesso à consulta da posição em cadastro técnico.
As Centrais Estaduais de Transplantes (CETs) integram o SNT, os órgãos são responsáveis pela coordenação e regulação da lista de receptores no âmbito estadual, assim como pelo recebimento de notificações de potenciais doadores com diagnóstico de morte encefálica e logística adequada para a realização do processo cirúrgico. As organizações de Procura de órgãos e tecidos (OPOs) também assumem papel crucial junto às CETs, atuando, principalmente, na detecção de potenciais doadores.
A enfermeira Lisiane Paiva explica que a lista é nacional e regionalizada, ou seja, cada estado tem seus pacientes cadastrados e a distribuição obedece, inicialmente, essa regionalização. No entanto, casos graves sempre têm prioridade, por essa razão os órgãos podem ser alocados para outros estados. “Se houver uma doação aqui no Ceará e tiver um paciente em estado crítico no estado de Pernambuco, onde esse órgão possa ser transportado, o órgão vai para quem está em primeiro lugar na fila, por gravidade”, explica.
Embora a fila seja unificada, Eliana Barbosa explica que ela possui um caráter dinâmico, sendo regulada a partir de critérios específicos, como compatibilidade sanguínea, genética e antropométrica (peso e altura), tempo de espera e gravidade clínica. A fila não possui como critério determinante a ordem de chegada; critérios de compatibilidade para cada órgão e tecido são também considerados. Após registro no CTU o sistema realiza o cruzamento automático de informações com os dados já existentes, assim a lista está em constante atualização. Para transplante de coração, por exemplo, são considerados
A coordenadora da CETRA relembra também que a legislação brasileira estabelece prioridades na alocação de órgãos, como o transplante renal para pacientes pediátricos. Conforme o artigo 69 da Portaria de Consolidação n.º 4/2017 do Ministério da Saúde, “quando o doador tiver idade menor ou igual a 18 anos, serão, primeiro e obrigatoriamente, selecionados potenciais receptores, com idade igual ou menor que 18 anos”, exceto em caso de zero incompatibilidade (ou seja, havendo total compatibilidade com outro paciente). Caso não haja receptor compatível, o órgão é direcionado a um paciente adulto.
Para a realização de transplantes, o Sistema Único de Saúde (SUS) disponibiliza assistência integral aos pacientes: exames preparatórios, cirurgia, acompanhamento e medicamentos necessários.
Critérios legais para doação e transplantes
O Decreto n.º 9.175/ 2017 regulamenta a Lei n.º 9.434/1997, para tratar da disposição de órgãos, tecidos, células e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento. Conforme a legislação, os transplantes somente poderão ser realizados em pacientes com doença progressiva ou incapacitante e irreversível por outras técnicas terapêuticas.
Para a doação ser efetivada é necessária autorização de um familiar de até segundo grau maior de idade e juridicamente capaz. Por essa razão, é importante informar os familiares acerca do interesse em se tornar um doador. A família é orientada por equipes médicas, que realizam o acolhimento e orientam sobre o processo de doação. Após o diagnóstico de morte encefálica, e confirmação da doação por parte da família, é realizada uma investigação sobre o histórico clínico do doador a fim de evitar riscos para o receptor e profissionais envolvidos na realização do transplante.
Para transplantes de órgãos sólidos — coração, pulmão, rim, fígado e pâncreas — são considerados somente doadores que tiveram morte encefálica. A médica Eliana Barbosa explica que existem dois tipos de doadores, vivos e falecidos. Órgãos como o rim e parte do fígado, por exemplo, podem ser doados em vida.
Segundo o Ministério da Saúde, os doadores vivos, desde que com compatibilidade sanguínea com o receptor, podem doar também parte do pulmão ou médula óssea (tecido encontrado no interior dos ossos). Esse tipo de doador, saudável e juridicamente capaz, precisa ser parente de até quarto grau, caso não, é necessária autorização judicial. Doadores falecidos podem doar uma quantidade mais expressiva de órgãos: rins, pulmão, pâncreas, coração, fígado e intestino; e tecidos: córneas, válvulas, ossos, músculos, tendões, pele, cartilagem, medula óssea, sangue do cordão umbilical, veias e artérias.
Para a efetivação do transplante são considerados critérios específicos e de gravidade para cada órgão, no caso de coração, por exemplo, segundo a Portaria n.º 2.600/2009 do Ministério da Saúde, o coração doador deverá ser distribuído inicialmente entre os potenciais receptores isogrupo (mesmo grupo sanguíneo) e, posteriormente, obedecendo à compatibilidade ABO.
Para transplantes realizados em caráter de prioridade, o doador e o receptor devem respeitar somente a compatibilidade em relação ao sistema ABO. No que se refere a transplante realizado em criança, em caráter de prioridade, é possível o uso de coração que não obedeça ao critério de compatibilidade ABO, desde que justificada a necessidade e com consentimento dos respectivos pais ou responsáveis legais.
No que se refere a doação de órgãos por crianças, ambos os genitores precisam consentir com a doação. Quando, por algum motivo, pai ou mãe não é localizado, ou está inviabilizado de autorizar, é necessário autorização judicial para a doação ocorrer. A Defensoria Pública do Ceará, por meio do Grupo de Trabalho do Transplante, mantém parceria com a Secretaria de Saúde do Estado (SESA) para atuar em situações em que questões jurídicas impedem a realização de doações de órgãos e tecidos, como nos casos de ausência de familiar legalmente autorizado ou quando surgem dúvidas relacionadas à documentação.