Um sistema que adoece e outro que cuida: como a UFC ajuda nos desafios da saúde emocional da sociedade
- Kamila Fernandes
- há 48 minutos
- 7 min de leitura
Texto: Lucas Matheus
Edição: Naiana Rodrigues
Em meio a mais de 400 mil afastamentos do trabalho e de diagnósticos de transtornos mentais no País e no Estado, a Clínica Escola de Psicologia da Universidade Federal do Ceará existe há 55 anos e contribui para a rede de cuidado psíquica da cidade.

A Clinica Escola de Psicologia da UFC está localizada na Rua Waldery Uchôa, 34, Benfica. Foto: Lucas Matheus
Redes sociais que incentivam o consumismo, escala de trabalho 6x1, inlfuencers pregando um lifestyle com sua rotina de skincare com link e cupom de desconto, o autossacrifício em busca de uma vida melhor. Todos os dias, assistimos e curtimos as performances de diferentes pessoas em prol de um sistema adoecedor: o neoliberalismo.
O Global Mind Project, projeto da organização de pesquisa sem fins lucrativos Sapien Labs, que organiza dados relacionados ao bem-estar anual, divulgou uma pesquisa feita em 2024 com 420 mil pessoas, em 71 países e os resultados revelaram a atual crise de saúde psíquica no país.
No ranking, o Brasil fica em último, ao lado da África do Sul e do Reino Unido. Essa posição torna-se ainda mais real quando observam-se os dados divulgados pelo Ministério da Previdência Social do ano de 2024: foram solicitados 3,5 milhões pedidos de licença no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) motivados por várias doenças. Dentre elas, 472.328 foram atendidas em razão de saúde mental, um aumento de 68% em relação ao ano de 2023.
Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), a saúde mental pode ser definida como um estado de bem-estar que permite às pessoas lidarem com os momentos estressantes da vida e, a partir deles, serem capazes de aprender e construir de forma plena a melhoria da comunidade. Contudo, em uma sociedade em que estamos sempre cansados pelo excesso de produtividade e gastamos muito tempo preso nas telas, a existência social se tornou um verdadeiro fardo.
Sarah Montezuma é psicóloga e pesquisadora formada pela Universidade de Fortaleza (Unifor) com especialização em saúde mental coletiva pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) e mestranda em avaliação de políticas públicas pela Universidade Federal do Ceará (UFC), ela apresenta o processo constante de isolamento dos sujeitos como uma explicação para os números de adoecimentos emocionais. “O afastamento de uma coletividade traz muitos impactos na nossa saúde como um todo, porque nós somos coletivo”, explica.
Esse fenômeno de afastamento do coletivo está diretamente ligado ao atual sistema econômico vigente no país. “Não tem como a gente pensar em uma perspectiva de crescimento de uma forma individual, como é pregada muitas vezes pelo nosso sistema capitalista, neoliberal”, aponta Sarah.
Para o neoliberalismo, sistema político e econômico que prega a livre ação do mercado e mínima intervenção do Estado, cada indivíduo deve lutar para atingir seus próprios objetivos, mesmo que para isso precise “derrubar” outras pessoas.
Além desse sistema, José Olinda, professor do departamento de Psicologia da UFC, atribui essa crise psíquica às cicatrizes deixadas pela pandemia. “Após o período da pandemia, houve um acirramento muito grande de problemáticas de saúde que demandam um cuidado de saúde mental”, afirma.
Um indicador desse aumento pós-pandemia está no consumo de medicamentos. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) revelou dados que apontam um crescimento nacional de até 87% nas vendas de ansiolíticos, estabilizadores de humor e antidepressivos.
A pesquisadora Sarah explica que a procura por diagnósticos e medicamentos “nada mais é do que uma busca de fugir dos ambientes muitas vezes adoecedores”. Esse processo reflete mais ainda o crescimento da individualização, ou seja, de uma culpa pessoal, pois a pessoa pode pensar “se eu não estou conseguindo estar em um local, será que o problema sou eu?”, explica a pesquisadora.
Ela também faz um alerta sobre as subnotificações que existem para adquirir esses medicamentos e diagnósticos de forma mais fácil. “Porque eu conheço fulano, eu conheço ciclano, eu consigo aqui, consigo lá, sem ter a consulta com o psiquiatra, sem fazer parte de um sistema único”, aponta. “Se a gente for botar na ponta da caneta também, isso vai subir absurdamente. Esse índice que é divulgado, por trás ainda tem toda a questão da subnotificação”.
No contexto estadual, os números também são agravantes. Segundo dados do Ministério da Previdência Social do Governo Federal, nos primeiros oito meses do ano de 2024, o Ceará autorizou um total de 13.118 benefícios previdenciários com justificativa de transtornos mentais. Um salto de 66% em relação ao ano inteiro de 2023, com 7.881 casos.
O cuidado
José Olinda que também é diretor da Clínica Escola de Psicologia da UFC relata a crescente procura de atendimento psicológico: “Existe uma demanda represada gigantesca”, explica, “nesse momento, se você me perguntasse, eu diria que deve ter cerca de 300 pessoas inscritas na fila de espera, além daquelas que vêm nas terças-feiras para o plantão psicológico.”
A clínica fica localizada na rua Waldery Uchôa, um equipamento da Universidade Federal do Ceará e realiza mais de 600 atendimentos por mês. “Ela é aberta para acolhimento da comunidade inteira, sem nenhuma discriminação”, afirma o diretor, mas é evidente que as pessoas que buscam a clínica são pessoas de poder aquisitivo menor, com maiores dificuldades financeiras e, além disso, os próprios alunos da universidade.
O serviço existe desde o final da década de 1970 e tem suma importância não só para a comunidade, mas para a própria formação dos alunos do curso. “Eu acho que a clínica se tornou um dispositivo fundamental no sentido de formação para os estudantes, de possibilidade, de contato com esse espaço”, explica Camilo Soares, estudante do décimo período de psicologia e estagiário na clínica desde março deste ano.
Na clínica é ofertado o serviço de plantão psicológico, o qual ocorre todas as terças de manhã e à tarde. Na ocasião, é distribuído um número de fichas, que varia de acordo com a quantidade de estagiários disponíveis no dia, para atendimento de pessoas em momentos de crise, algo mais de urgência e, por vezes, de apenas uma sessão, mas que não deixa de contribuir para a saúde da comunidade acadêmica e do público externo.
O estudante e estagiário da clínica, Francisco Cleiton, entende a relevância da sua atividade: “A pessoa, às vezes, quando termina, termina mais calma, termina mais tranquila”, conta o graduando, “você conseguiu dar um acolhimento, você conseguiu, no final, de certa forma, que ela se sentisse compreendida, entendida e, de certa forma, também dar um suporte, um encaminhamento, uma direção”, completa.
Além dos plantões, existe outra modalidade ofertada, a psicoterapia. Um processo mais longo de diálogo com o psicólogo, com sessões que duram em torno de 50 minutos. A partir da escuta, abre-se um mundo novo, “poder ver a pessoa trilhando os seus passos, e a gente estar junto naquela caminhada de alguma forma, tem essa dimensão do encontro mesmo”, garante Camilo.
Ao todo, 59 estagiários estão, atualmente, atuando nas modalidades de plantão e psicoterapia. A atividade começa a partir do nono semestre na atividade de “Estágio Obrigatório na Ênfase” e os discentes que escolherem seguir na área da psicologia clínica vão para esse equipamento, todos supervisionados por oito professores do curso.
Apesar disso, Sarah – psicóloga e pesquisadora –, reflete sobre o desafio de trabalho no âmbito psíquico com esse curto tempo, “eles vão lá 50 minutos da semana inteira deles. E o resto? O resto da semana eles estão se matando para trabalhar. Estão ali nessa busca incessante por alguma coisa, todas as outras horas do dia deles”, e levanta o questionamento: “como é que a gente trabalha a saúde mental em um ambiente adoecedor?”.
Os desafios de manutenção dessa relação paciente-psicólogo são reduzidos a partir da frequência e constância dessa escuta, “eles continuam a vir, né, quando eu falo assim ‘até a próxima semana’ e elas me respondem ‘até a próxima semana’, pra mim, isso é significativo de uma relação que se constrói, e eu acho que é onde eu me seguro”, conta Camilo.
O dia a dia

Para que o processo terapêutico tenha sucesso é preciso regularidade nos atendimentos. Foto: Lucas Matheus
Apesar da penumbra, é aqui onde muitas pessoas encontram direcionamentos para seguir suas jornadas com menos aflições. São nesses corredores, por trás de cada uma dessas portas, onde acontecem as sessões de emergência e psicoterapêuticas. Uma sala branca com duas cadeiras, uma de frente para a outra, e separadas apenas por uma pequena mesa de centro circular.
Os plantões emergenciais não seguem o tempo de 50 minutos das sessões psicoterápicas, podem durar uma ou até mesmo duas horas. Aqui, o objetivo é um: acolher. O intuito dos estagiários é demonstrar que o sofrimento daquela pessoa é visto e ouvido de forma qualificada. A partir desse trabalho, é avaliado se a necessidade é pontual ou se o paciente necessita de acompanhamento frequente.
É o momento em que a psicoterapia aparece. As sessões são semanais, o trabalho desenvolvido é lento e a relação paciente-psicólogo é construída sem pressa.. O horizonte de medos, inseguranças e incertezas com o tempo passa a dar lugar ao entendimento de que a vida não acontece em linha reta – mas em curvas –, essa é a beleza do encontro.
Embora seja um auxílio para a comunidade acadêmica da UFC e para a sociedade, o equipamento enfrenta obstáculos, sendo o principal a sua localização. Ingrid Vitória, assim como Camilo, é estagiária da clínica, estudante no décimo semestre de Psicologia, e desabafa sobre esse desafio, “é uma localização um pouco escondida. Muitas pessoas não sabem onde fica localizada a clínica escola”, a reclamação é conjunta dos estagiários.
José Olinda, diretor da Clínica Escola, também traz esse assunto à tona, “nesse momento, nós estamos reivindicando novos espaços, onde a gente possa pensar para além da clínica escola de psicologia”. O desejo é integrar e ampliar esse serviço oferecido, indo além dos plantões e da psicoterapia.
Sarah Montezuma fala sobre a isenção do governo em criar políticas que auxiliem todo esse processo, “o Estado tira essa lógica de que o dever é dele. É um Estado mínimo. O investimento do Estado no neoliberalismo é mínimo”. A baixa cobrança estatal vem de um local: o desmonte das coletividades, fazendo com que a lógica individualista cresça cada vez mais e a ideia de uma política pública passe a soar como um “favor” do governo
A clínica é uma dessas políticas públicas, que visa, além de ajudar na formação prática dos alunos, auxiliar a comunidade, oferecendo uma escuta supervisionada por profissionais. Ingrid explica que embora existam “outros dispositivos que a sociedade pode ter, como o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)”, é entendido que há uma fila de espera muito grande, “e a gente também pode ser uma ferramenta de auxílio, né, para atender essa grande demanda que hoje em dia surge”, comenta.
A clínica persiste como um lugar de ajuda acadêmica e comunitária, porque “eu acho que, apesar dos pesares, dessas dificuldades, a gente se mostra muito potente”, desabafa Ingrid, “a gente vai conseguindo dançar na corda bamba”, conclui.